domingo, 5 de dezembro de 2010

O último dia

Anunciaram que o mundo vai acabar amanhã. Tenho um espetáculo já marcado. Será o último de minha carreira. Quantas pessoas irão ao teatro no último dia de suas vidas?  

E eu, o que farei? Vou cumprir o meu último compromisso profissional? Talvez não haja tempo nem para os aplausos. Uma peça sem o fim previsto no script, um final diferente... Quem sabe gritos da plateia, apelos de “nos deixe neste mundo mais tempo” e as perguntas ao Criador: “Por que agora?”.

Terei que improvisar, pular algumas falas e quando ouvir barulhos que sinalizam o fim dos tempos, deixar que pensem ser da sonoplastia do teatro. Assim o público não vai se desesperar. Então vou acelerar o desfecho da encenação.

Faço monólogos. Gosto disso. Sozinho no palco. Mas pela primeira vez queria que não fosse solo. Queria uma mão pra segurar, um olho perto pra contemplar, um riso rindo comigo no tablado. Alguém pra abraçar, aliviando e despistando minha tensão.

E o telefone? Deixo ou não ligado? Nunca vou com ele para o palco, claro. Mas será o dia último. E se aquela pessoa ligar pra dizer o que desejo ouvir há tanto tempo? Mas poderá ser um cobrador dizendo que é a minha última chance de pagar o débito e pode alertar que os “devedores vão para o inferno”. Tenho que decidir também isso. Ela, as dívidas, meu compromisso, aplausos silenciosos, minha missão. 

Missão? Caramba, será que cumpri minha tarefa neste mundo? Deu tempo? Não sei. 

O telefone está tocando... Quem será? Não conheço esse número. Vou atender. Uma voz de menino do outro lado da linha.

- Meu nome é Vinícius. Você não me conhece.

- E o que você quer? - logo perguntei.

- Eu tenho um sonho. Preciso de sua ajuda.

- Como assim? O que posso fazer? Que sonho é esse?

- Trabalhar em teatro.

- E daí?

- Deixa eu fazer a peça com você amanhã?

Fiquei um tempo sem fala. Passou um filme na minha cabeça. Lembrei de mim criança, da minha batalha pra estar no palco, das portas fechadas, das que se abriram pra que tudo acontecesse...

- Você escutou o que eu disse? – voltou a falar o menino, estranhando meu silêncio.

- Oi, estou aqui. Escutei, sim. Espero você no teatro amanhã, na hora do espetáculo. Vou ver o que a gente pode fazer.

- Tem mais uma coisa – anunciou o garoto.

- Tem? O quê?

- Quero segurar sua mão, ver seu olhar e sorrir pra você na hora que tudo acabar.

Gelei por dentro. Esse menino leu meus pensamentos?

- Quer sorrir? Por que se o mundo vai estar acabando?

- Porque você vai ter me ajudado a realizar meu sonho. E vou pegar na sua mão porque uma nova estrada vai começar e estaremos juntos e vou beber no seu olhar o gosto da missão que você cumpriu: a de emocionar por meio da arte.

Eu me despedi do menino. Desliguei o telefone. E fui dormir em paz. 


(Fátima Nascimento)

4 comentários:

  1. Fátima, obrigado pela sua visita na minha página. Vim retribuir, agradecer e não esperava a emoção que encontrei aqui. Lindo o que li. Peço permissão para postar este texto no meu blog.
    Abraços! Kenny Rosa (Cronicando)

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  2. Obrigada pela visita e parabéns pelo excelente blog, vou continuar visitando seu blog.
    Beijos de luzes no coraçao.

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  3. cronicandocomvoce, pode postar em seu blog. Será uma honra pra mim. Meu abraço.

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  4. Águas da Vida, agradeço tb pela presença. Muita luz e paz tb pra vc. Meu abraço.

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