sábado, 12 de fevereiro de 2011

Felicidade pra presente


O céu estava vestido de azul. As ondas do mar iam e vinham num mesmo ritmo, com calma. Uma brisa suave diferia muito da ventania que levantou a areia no dia anterior. A antítese era Leopoldo. A cada dois minutos conferia no relógio o tempo que faltava pra revê-la. A ansiedade crescia à medida que as lembranças pareciam ganhar vida.

Na rodoviária desembarcara uma mulher que nos olhos apresentava um brilho diferente. Não era apenas um olhar reluzente em um rosto. Havia mais. "Sou Lóri", disse ela ao taxista, "estou aqui pra embrulhar a felicidade". O motorista não entendeu e fitou os olhos da passageira pelo retrovisor. No rádio do carro uma música fez Lóri viajar. Uma lágrima emocionada rolou de sua face.

Leopoldo e Lóri não se viam há muitos anos. Seguiram caminhos diferentes, embora intuíssem que uma vida em comum seria satisfatória. Não era o acaso que os aproximava novamente. Determinada, ela consultou a lista telefônica e combinou o encontro. De uma coisa tinha certeza: suas pernas bambeariam. Talvez a emoção viesse a conter as palavras, mas não haveria ausência de ternura, também sabia.

O táxi parou defronte ao local combinado. Dois corações pulsavam freneticamente. A perna bamba dela e a voz trêmula dele eram o prenúncio daquele encontro. Tantas histórias vividas juntos, outras tantas havidas enquanto estiveram distantes. Leopoldo portava uma mala; Lóri, um embrulho.

- Que saudade - disse ele. Olhou-a melhor, completou: "Você está ainda mais linda". 

As palavras pareciam ter fugido da boca de Lóri. Pegou o embrulho, entregou para Leopoldo. Fez sinal para abrir. Era uma caixa de papelão com fita verde, muito leve. Ele puxou a fita com os lábios, já se insinuando pra ela. Lóri enrubesceu.

"A caixa está vazia!", surpreendeu-se Leopoldo. Era a misteriosa e intrigante Lóri que ele conheceu e amava. Ela carinhosamente puxou uma das mãos dele e junto da dela conduziu ao interior da caixa.

As mãos dele e dela – juntas – foi o presente que se deram. A caixa agora estava cheia de felicidade.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Abaixo do céu


Todos os dias ele olhava o céu e franzia a testa como quem força a visão. Em seguida voltava pra dentro de casa. A cena era vista pela manhã, tarde e noite. Havia uma curiosidade entre a vizinhança: o que tanto ele via ou queria ver? Os vizinhos especulavam sobre o assunto.

Na opinião de um grupo, o homem olhava o céu pra saber se ia ou não chover; outros vizinhos supunham que tinha uma audição tão aguçada que sabia que uma aeronave estava naquela rota, sendo difícil de ver porque muito distante da terra.

Mas havia alguém que imaginava diferente de todos. Bianca, 13 anos, cega de nascença, sabia da história de tanto que se comentava. Ela não podia ver o homem franzindo a testa, "esticando" os olhos e sequer podia ver o céu. Mas defendia que o homem não procurava nada: ele apenas queria chamar a atenção dos vizinhos.

Bianca entendia de rejeição. Cansada de ter sua opinião ignorada, encheu-se de coragem e foi até ele num daqueles momentos de disse-me-disse. Com sua bengala em mão, esbarrou nele na calçada. Pediu desculpa. Ouviu um "tudo bem" e perguntou:

"Está olhando o céu, né?". Ele disse: "Como sabe?". E ela: "As pessoas comentam que você sempre faz isso". Ele: "E você acredita sempre no que dizem?".

Bianca ficou desconcertada, mas foi direto ao ponto. "Por que você vem aqui de manhã, de tarde e de noite e fica olhando pro céu?". 

Ele respirou fundo e respondeu com outra pergunta: "Por que você acha que faço isso?". Ela disse o que pensava e contou do preconceito que sofre por ser cega. O homem, então, disse que ela havia acertado a razão dele olhar o céu com tanta freqüência.

A atitude de Bianca fez com que outras pessoas se aproximassem dele e fizessem indagações. Ele sempre respondia com uma pergunta e em seguida dizia que haviam acertado.

De manhã ele queria saber como seria o tempo naquele dia. À tarde queria ver o avião. À noite a solidão era tanta que ia pra rua na esperança de alguém falar com ele; o que agora acontecia bastante. O homem não deixou de olhar o céu, mas passou a compartilhar o que via e sentia. 

Fátima Nascimento

domingo, 5 de dezembro de 2010

O último dia

Anunciaram que o mundo vai acabar amanhã. Tenho um espetáculo já marcado. Será o último de minha carreira. Quantas pessoas irão ao teatro no último dia de suas vidas?  

E eu, o que farei? Vou cumprir o meu último compromisso profissional? Talvez não haja tempo nem para os aplausos. Uma peça sem o fim previsto no script, um final diferente... Quem sabe gritos da plateia, apelos de “nos deixe neste mundo mais tempo” e as perguntas ao Criador: “Por que agora?”.

Terei que improvisar, pular algumas falas e quando ouvir barulhos que sinalizam o fim dos tempos, deixar que pensem ser da sonoplastia do teatro. Assim o público não vai se desesperar. Então vou acelerar o desfecho da encenação.

Faço monólogos. Gosto disso. Sozinho no palco. Mas pela primeira vez queria que não fosse solo. Queria uma mão pra segurar, um olho perto pra contemplar, um riso rindo comigo no tablado. Alguém pra abraçar, aliviando e despistando minha tensão.

E o telefone? Deixo ou não ligado? Nunca vou com ele para o palco, claro. Mas será o dia último. E se aquela pessoa ligar pra dizer o que desejo ouvir há tanto tempo? Mas poderá ser um cobrador dizendo que é a minha última chance de pagar o débito e pode alertar que os “devedores vão para o inferno”. Tenho que decidir também isso. Ela, as dívidas, meu compromisso, aplausos silenciosos, minha missão. 

Missão? Caramba, será que cumpri minha tarefa neste mundo? Deu tempo? Não sei. 

O telefone está tocando... Quem será? Não conheço esse número. Vou atender. Uma voz de menino do outro lado da linha.

- Meu nome é Vinícius. Você não me conhece.

- E o que você quer? - logo perguntei.

- Eu tenho um sonho. Preciso de sua ajuda.

- Como assim? O que posso fazer? Que sonho é esse?

- Trabalhar em teatro.

- E daí?

- Deixa eu fazer a peça com você amanhã?

Fiquei um tempo sem fala. Passou um filme na minha cabeça. Lembrei de mim criança, da minha batalha pra estar no palco, das portas fechadas, das que se abriram pra que tudo acontecesse...

- Você escutou o que eu disse? – voltou a falar o menino, estranhando meu silêncio.

- Oi, estou aqui. Escutei, sim. Espero você no teatro amanhã, na hora do espetáculo. Vou ver o que a gente pode fazer.

- Tem mais uma coisa – anunciou o garoto.

- Tem? O quê?

- Quero segurar sua mão, ver seu olhar e sorrir pra você na hora que tudo acabar.

Gelei por dentro. Esse menino leu meus pensamentos?

- Quer sorrir? Por que se o mundo vai estar acabando?

- Porque você vai ter me ajudado a realizar meu sonho. E vou pegar na sua mão porque uma nova estrada vai começar e estaremos juntos e vou beber no seu olhar o gosto da missão que você cumpriu: a de emocionar por meio da arte.

Eu me despedi do menino. Desliguei o telefone. E fui dormir em paz. 


(Fátima Nascimento)

domingo, 18 de abril de 2010

Força do desejo

O dia amanheceu azul. Na véspera olhara para o céu e ao ver tantas estrelas imaginou que o dia seguinte seria de céu limpo. Mas não que para ele fizesse alguma diferença se o tempo fosse de chuva ou não. Passaria o dia estudando, trabalhando e ... pensando.

Tinha decisões a tomar e sempre que se dedicava a resolver tais problemas doía-lhe a cabeça. Para um homem voltado à razão, pensar a emoção era exaustivo. Podia escolher o caminho mais fácil – dizer não à mudança – ou se embrenhar no que parecia mais difícil, mas cujas chances de satisfação eram bem maiores.

Dizia pra ele mesmo que não tinha medo, que “mudanças” não o assustavam, mas relutava em trilhar a direção apontada por um sentimento que acelerava seu coração e lhe dava uma doce euforia.

Desejava seguir o caminho do sentimento, mas se negava a caminhar nele. Não se dera conta, ainda, que a angústia crescia à medida que ia contra o seu desejo. Se andasse a favor do que sentia, as soluções apareceriam, certamente.

Quando a noite chegou intensa de escuridão, escreveu uma carta. Era pra ser uma despedida. Disse tantas coisas que não queria e que sabia não conseguiria falar se contemplasse o olhar e sorriso dela. Ele se sentia tão inteiro ao lado da mulher que dizia amar que ao partir deixava de estar completo. Mesmo assim enviou-lhe a correspondência.

A carta chegou no dia seguinte. Ela leu cada linha. A natureza, solidária ao pranto de seu coração, chorava lá fora. Doía saber que o que ele dissera era o contrário do que ele gostaria de ter dito. Ela sabia que uma parte dele estaria incompleta, talvez pra sempre. E uma parte dela, também.

O dia seguinte poderá chegar ensolarado. Sol lá fora e dentro deles. Afinal, o escrito na carta foi dito sem desejar.

Por Fátima Nascimento; texto escrito em dezembro/2008

Tempo de acreditar e fazer

"O tempo é sempre pouco quando nosso amor se encontra. Temos que aumentar o tempo ou encurtar o amor?". A afirmação seguida da pergunta foi feita por Lóri a Leopoldo, que considerava original a forma poética como ela se expressava.

“Aumentar o tempo”, disse Leopoldo. Lóri gostou da resposta, mas sabia que por enquanto não passava de uma frase. Desejava a prática do que era verbalizado por Leopoldo. Tinha sede de palavras, mas não lhe servia qualquer uma. Gostava das que se revelavam concretamente através de ações.

Emoção nos gestos, no olhar e na voz de seus dedos quando escrevia os pensamentos que vinham em sua cabeça, assim era Lóri. Mistura de poesia e sangue; hematopoiese.Entre uma palavra e outra no papel confidente, buscava respostas e se procurava e se perdia. Então reconhecia que o papel guardava segredos que até ela desconhecia. Nem tudo era revelado. Nem tudo era claro. Afinal, Lóri não tinha todas as respostas que desejava ou talvez temesse uma resposta que a desagradasse.

“A vida começa do outro lado do desespero”, enfatizava Lóri, repetindo o pensamento de Sartre, filósofo francês. Leopoldo e Lóri conheceram-se numa manhã de primavera do ano de 1960. Uma história de amor que se pensa possível apenas nos cinemas, mas que se tornou real.

Eles se encheram de coragem e atravessaram a porta. Um amor prisioneiro do medo que Lóri sonhou livre e possível. E que se concretizou. Uma lição que devemos adotar num tempo em que se dá pouca importância ao sentimento e à força das palavras.

Por Fátima Nascimento; texto escrito em novembro de 2008.

Antes que seja tarde

Uma música suave tocara no rádio. Era a histórica “Love Me Tender”, estreada por Elvis Presley em 1956. Imediatamente ele se lembrou dos momentos que passara ao lado da mulher que o atraía de uma forma que não sabia explicar ou conter. “Podia ter cantado essa música ao seu ouvido”, pensou. Na última vez em que se encontraram improvisou uma letra numa canção. Soou como uma declaração de amor. Ela gostou, e muito. Uma crítica suspeita.

Aquela mulher gostava de tudo nele: de suas mãos, seus braços, pernas, olhar, sorriso, palavras e volúpia. Também estava atenta ao seu interior e admirava o que conhecia, mas gostaria de saber mais. O que aquele homem dissera através da canção que criara quando se olhavam com imensa ternura, faria mais sentido se o impulsionasse a agir na direção apontada pela emoção.

O que os dias seguintes reservavam eram de uma incógnita cruel. Não sabiam se estariam juntos novamente. Cada encontro podia ser o último e – embora nada dissessem a respeito – os minutos finais eram sombreados pela tristeza e antecipada nostalgia. Era estranho como a saudade despontava ainda estando juntos.

Love Me Tender continuava a tocar no rádio. O pensamento dele viajou com doces lembranças e certa euforia no corpo. De repente o locutor pôs-se a traduzir a canção de Elvis Presley e ele concentrou sua atenção na letra, que dizia:

Me ame com ternura,/Me ame com doçura,/Nunca me deixe partir./Você tornou minha vida completa,/E eu te amo tanto./Me ame com ternura,/Me ame de verdade./Todos os meus sonhos realizados,/Porque, meu amor, eu amo você,/E eu sempre amarei./Me ame com ternura,/Me ame por muito tempo./Leve-me ao seu coração,/Pois é lá que eu pertenço./E nós nunca nos separaremos./Me ame com ternura,/Me ame, querida./Diga-me que você é minha,/Eu serei seu durante todos os anos,/Até o final dos tempos”.

Era exatamente isso que ele queria ter dito pra ela. Olhou para o telefone. Marcaram um encontro. Não mais houve a sombra da despedida e nem a prematura saudade.

Por Fátima Nascimento; texto escrito em agosto/2008

Dia surpresa

Eram cinco da manhã quando acordou já sem sono nenhum. E nem havia ido dormir tão cedo. À uma da madrugada foi pra cama. Quatro horas de noite dormida pareceram suficientes para recarregar a bateria de seu corpo e mente. Estava animado, embora não tivesse planejado nada de especial para aquele dia.

Olhou no espelho e não viu olheiras. Foi até a varanda e aspirou com toda força o ar da manhã. “Delícia!”, exclamou. Os pássaros cantavam. Uma brisa suave tocou seu rosto, balançou seus cabelos. Desejou sentir o aroma e sabor de café; foi preparar o desjejum, mas antes ligou o aparelho de música e o som do sax invadiu todos os cômodos.

Desejou ligar para um amigo e falar do seu bem-estar, mas era muito cedo e não queria ser inoportuno. Conteve-se. Pegou uma folha de papel e se pôs a escrever trovas, o que era um desafio, pois tinha dificuldade em colocar sete sons em cada verso, embora fizesse rimas com certa facilidade.

Vivia sozinho. Tinha a companhia da música e das palavras. Um amante da escrita! Gostava de ser livre e dizia que uma pessoa sem liberdade é como um passarinho que não pode voar, com desejos algemados, passos vigiados, coração engaiolado. Mas naquela manhã, especialmente, desejou uma companhia.

Teve uma idéia estranha: a primeira pessoa que visse passando chamaria pra tomar café com ele. Foi pra varanda e esperou. Avistou ainda à distância um senhor que caminhava com alguma dificuldade. Estava decidido: convidaria aquele homem.

Não quis acreditar no que seus olhos insistiam em ver. Era uma pessoa com quem deixara de falar havia 10 anos. Agora sabia que o dia diferente era o prenúncio de que algo especial aconteceria. Chamou o homem.

Pai e filho tomaram café, ouviram música e fizeram trovas. O Dia dos Pais estava próximo. Anteciparam a comemoração.

Por Fátima Nascimento; texto escrito em agosto/2008.